Partido Comunista Internacional
 


Os distúrbios de 8 de janeiro na capital do Brasil dão vento para a bandeira da democracia burguesa

Nos últimos meses, o Brasil tem se envolvido em uma disputa sobre as recentes eleições presidenciais, um terreno familiar de brigas de tapas, sermões de políticos e intensas discussões na mesa de jantar de família. Nenhuma dessas atividades tem qualquer importância para o proletariado, embora sejam anunciadas como parte da democracia, esse sistema pútrido e mentiroso que dilui a voz e o poder do proletariado em apelos ao “povo” e à nação, ao ritmo em que procura sempre desviar a luta de classes para o caminho inofensivo do parlamento.

Depois de um primeiro turno em que uma série de figuras insignificantes foram eliminadas após terem sido descartadas pelo público e pela mídia, Luís Inácio Lula da Silva, o principal candidato de esquerda, foi eleito presidente, destituindo seu antecessor, Jair Bolsonaro, aparentemente mal-assombrado por seu envolvimento em corrupção e comentários escandalosos – ou seja, por não ser capaz de dirigir competentemente o Estado burguês. Mas enquanto Lula promete “governar por todos os brasileiros” e Bolsonaro grita e berra que houve fraude nas eleições, todos nós sabemos que este é um esforço fútil e sem sentido para qualquer um, exceto para os políticos eleitos e seus grupos de pressão e lobbying.

Na mesma tendência que os bolsonaristas, os lulistas e seus aliados (PSOL, PCdoB, sindicatos de regime) formam um grupo policlassista, diferente dos primeiros apenas em seu discurso, seus símbolos e sua composição numérica de classes e estratos sociais. Apesar de arrastarem grupos proletários, lumpen-proletários e camponeses para seu seio, estes dois partidos são, em seu programa e prática, burgueses. Eles não propõem e nunca irão propor a independência política do proletariado.

Um detalhe importante a ser levado em conta são os resultados das eleições de 2022: enquanto Lula se gaba de ter mobilizado 60 milhões de brasileiros para votar nele, Bolsonaro conseguiu chegar a 58 milhões. Por mais estranho que isto possa parecer para os reformistas, é preciso lembrar que o Estado brasileiro se move ao vapor da corrupção e de governos instáveis, e que a classe trabalhadora no Brasil ainda não desenvolveu organizações competentes que possam expandir sua atividade no campo da luta de classes, deixando que os noticiários sejam dominados pela porcaria populista e eleitoralista. Isto não é algo que foi ignorado pelo proletariado brasileiro, grande parte do qual não vê nenhuma possibilidade de mudança sistêmica dentro desta democracia.

Para ilustrar este argumento, de uma população total de 214 milhões, o Brasil tem um eleitorado registrado de 156 milhões. Desses 156 milhões de cidadãos, a Exame informa que cerca de 32 milhões não compareceram às urnas em nenhum dos dois turnos eleitorais (quer tenham ou não justificado sua ausência no tribunal – no último caso, são obrigados a pagar uma multa). De acordo com o Estadão, outros 1,9 milhões de pessoas votaram em branco (aceitando o candidato que ganhou) e quase 3,5 milhões votaram nulo (não aceitando nenhum dos candidatos no segundo turno das eleições).

Lula e Bolsonaro, juntos, totalizaram 118 milhões de votos. Mas isso significa que 96 milhões de pessoas – mais do dobro da população da Argentina – foram deixadas de fora da “festa da democracia” do país. Os políticos afirmam ter um apoio popular maciço por trás deles, mas no final do dia, eles só podem governar em nome da burguesia, e sua popularidade, antes uma vez sólida, muitas vezes desaparece como fumaça pelo ar.

Como temos observado nos últimos dez anos, o Brasil tem visto o surgimento de uma corrente de ativistas e figuras políticas burguesas de direita, que se mobilizaram atrás da bandeira verde e amarela da nação, denunciando o “caos” e a “instabilidade” da política brasileira, reclamando de escândalos de corrupção (mas nunca os de sua facção) e dando espaço na mídia a qualquer um que concorde com sua narrativa. Eles identificam uma vasta e vagamente definida “conspiração comunista” como a fonte de todos os seus males, em uma cópia-de-carbono do discurso padrão da direita política em toda parte do mundo, desde os Estados Unidos até a Europa e aos estados menos proeminentes do mundo. Eles não reconhecem o resultado das eleições de 2022 e insistem que Bolsonaro venceu.

Em 8 de janeiro de 2023, esta corja, dominada por pequenos burgueses (mas arrastando pessoas de outros grupos sociais) decidiu unir forças e marchar sobre os palácios governamentais da capital, Brasília, ocupando os prédios por algumas horas e se envolvendo em um bacanal de vandalismo, quebrando potes e derrubando cadeiras, tudo isso enquanto transmitiam ao vivo suas ações e tiravam fotos uns das outros para que todos pudessem ver. Os policiais deixaram claro seus interesses de classe ao se recusarem a fazer mais do que ficarem parados, vendo a multidão semear o caos. Ao saber disto, o presidente ordenou uma intervenção federal no distrito de Brasília, enviando o exército e o resto da polícia para prender mais de 1.000 manifestantes. Os palácios foram rapidamente reocupados e a bagunça parou. Lula aproveitou a situação para apresentar seu próprio discurso nacional-reformista.

A mídia burguesa, especialmente o porta-voz da família Marinho, a Rede Globo, que tem apoiado inteligentemente Lula e a “democracia”, apressou-se para condenar o incidente, lançando uma barragem de palavras preocupadas como “terroristas”, “criminosos” e “insurrecionistas”. Choraram até cair os olhos da cara pelas mesas derrubadas, pelas pinturas arranhadas de Cândido Portinari e pelas insígnias profanadas do Estado brasileiro. Vários governos, a ONU e a OEA já repudiaram os eventos, e condenações políticas choveram sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Enquanto isso, o proletário assiste aos eventos na TV e diz “que bagunça”, encolhe os ombros e pega o ônibus para o trabalho.

A “esquerda” brasileira, naturalmente, não pensou duas vezes em condenar heroicamente a ofensiva do perigoso exército de influencers de Instagram e proprietários de lojas de equipamentos de limpeza de piscinas, que desceram sobre o templo sagrado do povo – o trotskista Esquerda Diário apelou ao proletariado para organizar uma “greve nacional contra os golpistas”, como se o aparelho repressivo do Estado tivesse tantos problemas para lidar com eles.

Estes atores da peça de teatro perpétua do Estado burguês podem lamentar as imagens de todos os atos de vandalismo nos palácios de Brasília, como se fosse Roma e os vândalos; mas isto não preocupa aos proletários, a maioria dos quais nunca viu infraestruturas decentes e garantidas em seus bairros, em seus locais de trabalho ou nas escolas de seus filhos. E enquanto o novo governo contratará trabalhadores para limpar sua casa em uma semana, a estes últimos nada mais podem oferecer do que as acrobacias e palavras sentimentalistas de Lula.

Pode-se dizer, sem erro, que os eventos de 8 de janeiro no Brasil foram, até o mais mínimo detalhe, uma réplica quase exata dos de 6 de janeiro de 2021 em Washington D.C. Em ambos os casos, um grupo histérico de ativistas de direita pequeno-burgueses atropelou uma força policial simpática, sem oposição, entrando na sede principal do governo do país, ocupando o edifício antes de ser rapidamente expulso do lugar. Em ambos os incidentes, a mídia burguesa ao redor do mundo espalhou o pânico sobre uma ameaça de golpe fascista, declarando que “a democracia está em perigo”, como se fosse uma princesa sequestrada. E agora, o Estado ajustou e aperfeiçoou um conjunto de ferramentas que pode, e irá, um dia usar contra o proletariado, quando os políticos, as lideranças sindicais de regime traidoras e o discurso de “defesa da nação e da democracia” não serão suficientes para conter suas lutas.

Como já foi demonstrado, o golpismo pequeno-burguês de direita tornou-se um fato regular e até mesmo previsível na sociedade política moderna. Mas, ao contrário dos comentaristas do antifascismo, não atribuímos sua ascensão a motivos abstratos. Em qualquer caso, é a conclusão lógica de forças tectônicas que sempre ocorrem abaixo do Estado burguês, uma prova condenatória de que a classe dominante não pode governar como antes governava. O velho consenso, construído sobre a “luta contra a corrupção”, entrou em colapso, e agora eles devem começar outra peça teatral, e quase todas as antigas facções “anticorrupção”, que em um momento apoiaram a presidência de Bolsonaro, já pularam do barco há muito tempo.

Como Marx uma vez colocou sucintamente em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte:

«A sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo de seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo. Toda reivindicação ainda que pela mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um “atentado à sociedade” e estigmatizada como “socialismo”. E, finalmente, os próprios pontífices da “religião e da ordem” são derrubados a pontapés de seus trípodes píticos, arrancados de seus leitos no meio da noite, jogados em carros de prisão, lançados em masmorras ou mandados para o exílio; seu templo é totalmente arrasado, suas bocas caladas, suas pernas quebradas, sua lei reduzida a pedaços em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos pela ordem são mortos a tiros nas sacadas de suas janelas por bandos de soldados bêbados, a santidade dos seus lares é profanada, e suas casas são bombardeadas por diversão em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. Finalmente, a baixa ralé da sociedade burguesa constitui a sagrada falange da ordem, e o herói Crapulinski se instala nas Tulherias como o ‘salvador da sociedade”».

Os apoiadores do Bolsonaro aqui se encaixam muito bem no papel de seguidores de Crapulinski, mas as classes dirigentes brasileiras não têm interesse em nada mais do que os primeiros têm a oferecer. A democracia, com seu estoque de bodes expiatórios, falsas soluções e becos sem saída pacificadores, provou ser mais capaz de mascarar e manter o domínio burguês do que a ditadura militar nua e crua (como a que governou o Brasil de 1964 a 1985) que a multidão pró-Bolsonaro exige. Os generais do alto comando das forças armadas, satisfeitos com suas pensões e privilégios, que não serão ameaçados por Lula, decidiram afastar-se dos tumultos bolsonaristas, para não arriscar novamente suas riquezas.

E enquanto a “esquerda” e o novo consenso se apressam para proclamar a “vitória da democracia contra o autoritarismo”, outras mudanças tectônicas estão escorregando sob nossos pés. Os apoiadores de Bolsonaro têm sido tão minuciosos em apropriar-se dos símbolos sagrados da nação – a bandeira, a camisa da Confederação Brasileira de Futebol, o hino nacional – que seus adversários se tornaram alérgicos a estes por associação. Até mesmo a mídia burguesa agora admite sutilmente que o que chamamos Brasil foi construído sobre as costas dos escravos africanos e indígenas, uma sociedade desigual pela própria natureza. E embora seja provável que os observadores caiam em narrativas identitárias sem um partido ou cultura de leitura que explique as relações de classe da sociedade (algo que sempre nos esforçaremos para difundir ou recuperar), qualquer “magia” que uma vez permeou estes símbolos outrora sagrados da nação está se dissipando, e muitos começaram a questionar se eles representam as massas trabalhadoras. Como escrevemos em nossa análise dos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio dos EUA em nossa edição de fevereiro de 2021:

«Os tumultos de 6 de janeiro no Capitólio dos EUA foram a convulsão de um sistema social moribundo. A profunda crise do capitalismo tornou-se uma crise política na principal potência do mundo burguês. Os Estados Unidos não viram tal emergência desde o início de sua guerra civil em 1861, antes de se erguerem como a principal potência capitalista. A extensão de sua queda – desde o triunfo da União em 1865 sobre a insurreição dos escravos até a apreensão do Capitólio pela máfia do MAGA – parecia impensável mesmo há algumas semanas. Mas como Marx e Engels observaram, sob o capitalismo “tudo o que é sólido se derrete no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente forçado a confrontar, com sentidos sóbrios, suas reais condições de vida, e suas relações com sua espécie” (Manifesto do Partido Comunista)».

Independentemente de seus sermões atuais, a burguesia brasileira e seu Estado tratarão os partidários de Bolsonaro com relativa leniência. O governador do Distrito Federal de Brasília, o centro-direitista Ibaneis Rocha, foi suspenso de seu cargo por 90 dias em retaliação por não fazer o suficiente para deter ou esmagar os manifestantes. Mas isto só significa que ele assumirá o cargo em abril deste ano. Os apoiadores do governo atual se orgulham de utilizar a tecnologia de reconhecimento facial para identificar e capturar os manifestantes, que nem se preocuparam em cobrir seus rostos, mas o dinheiro e as conexões lhes garantirão uma fiança ou uma gaiola dourada.

Mas é claro que, como mostra a repressão cada vez mais dura nos países vizinhos do Brasil, nada disso espera pela próxima revolta proletária, que tentarão esmagar por todos os meios à disposição da burguesia e de seu Estado. Será mostrado à classe trabalhadora a luva de ferro – porque esta classe, que sustenta toda esta sociedade através de seu trabalho, é, afinal, o único grupo desestabilizador que realmente assusta a burguesia.

A classe trabalhadora não merece ser banquinho de políticos oportunistas ou facções das classes dominantes.